O Moinho
I
O senhor Bernardo era um homem de respeito e honesto, assim era tido na aldeia, Nesse tempo era muito importante ser honesto._A aldeia tinha quase orgulho da sua honestidade tocante e brilhante; era um homem forte, mas fino, de pele semelhante ao marfim, e olhos escuros de tom violeta, a que as pestanas grandes escureciam mais o brilho de sombra doce. Morava à beira do rio, numa casa caiada de branco, com uma faixa azul no fundo das paredes, que tinha uma escada que dava para a cozinha; e eram as pessoas que tinham que ir fazer o giro até ao moinho, que sempre o achavam um encanto de simpatia sempre renovada, viam-no por trás da vidraça, entre os sacos de farinha, curvado sobre a mó, vestido de branco, que o pó da farinha matizava de cor branca de neve, «recolhido, mas alegre. Sorria com simpatia aos que chegavam. tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava
II
III
O Bernardo vivia desse modo, quando morava em casa dos pais. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai gastava tudo o que ganhava em tabernas e a jogar à batota, já velho, andava sempre bêbado e quando estava em casa passava os dias à lareira, num silencio escuro, cachimbo nos beiços a escarrar sobre as cinzas. Todos os dias batia na mulher.
Bernardo, pediu a Rita em casamento, para se livrar daquela situação em que vivia. Não amava a esposa, decerto, e na aldeia lamentou-se que aquele rapaz fosse entregar-se à Ritinha. Bernardo, com a morte do pai, ficou mais pobre; e acostumasse, finalmente, à esposa mal humorada, que passava o dia arrastando-se da sala para o quarto, resignou-se, na sua natureza de sustentador e tratador. Se a filha tivesse nascido sã e robusta. Mas aquela família que existências e hesitantes, que eles vieram apodrecer nas mãos dele, apesar dos seus cuidados agitados, apoquentavam-no. Às vezes, só cuidando das suas mós, sentia-se triste, com a fadiga da vida que o invadia como uma névoa que lhe escurecia a vida e a alma.
IV
Mas se a esposa chamava, ou um dos filhos chorava baixinho; limpava os olhos e aparecia com a sua face bonita tranquila, com alguma palavra consoladora, animava um, feliz e contente. A sua ambição era ver o seu mundo manuseado e bem acarinhado: Sem curiosidades, desejos, ou caprichos: nada o interessava, apenas as horas dos remédios. Todo o esforço era fácil, quando os contentava: mesmo cansado, passeava horas, conversava e lia as Vidas dos Santos, para a esposa, sentado à beira da cama, porque a doente ia caindo em devoção. De manhã acordava um pouco pálido. À tarde sentava-se à janela do moinho,olhando para a mó, que rodava e triturava os grãos transformando-os em farinha. A paisagem que via parecia-lhe tão monótona como a sua vida: em baixo o rio deslizava, entre as curvas dos campos, era uma terra humosa, cheia de matéria orgânica, plantada de milho, e erguia-se ao fundo, uma colina triste e despida, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casa que transmitisse daquela solidão de terra pobre uma nota de humanidade e vida. Todos os domingos ele procurava assistir à missa, que se realizava às sete horas da manhã. A sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas, o seu lar ocupava-o demasiado para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de bom pai, que cumpria com amor, se encontrava uma satisfação à sua sensibilidade; adorava os santos e enternecia-se com Jesus. Pensava que se a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, o tempo gasto em arrastar-se pelo confessionário ou junto do oratório, era uma diminuição cruel do cuidado prestado em casa; a sua maneira de rezar proteger a filha; e aquela pobre esposa pregada numa cama, tudo dependia dele, tinham-no só a ele, parecia-lhe terem mais direito ao seu favor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar quase toda a humanidade: o seu hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser o centro, a força, e amparo daqueles doentes, tornaram-no terno,mas prático: e assim era certo que administrava a casa, com bom senso e afeição, era um homem cuidadoso e um pai munido. Eram as ocupações que bastavam para ocupar quase o dia inteiro; a esposa, de resto, detestava visitas, o aspeto de caras saudáveis, as lastimas de cerimónia; e passavam-se meses sem que em casa de Bernardo se ouvi-se uma voz estranha à família, a não ser a do dr. Fausto - que o adorava.
V
Foi grande a exaltação que se verificou na casa, quando D. Rita recebeu uma carta de sua prima Alice, para lhe anunciar que dentro de dois ou três semanas chegava à aldeia. Alice era uma mulher célebre, e a esposa de Bernardo tinha naquela parente um orgulho impressionante. Alice era uma romancista e o seu último livro, Mariana, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, de uma análise dedicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua fama que já chegara à aldeia, apresentava-a como uma personalidade interessante, uma heroína de Lisboa, amada pelas pessoas importantes, impetuosa e brilhante, destinada a ocupar uma alta situação no Estado. Mas realmente na aldeia era notável especialmente por ser prima da Ritinha.
O Sr. Bernardo ficou alterado com esta visita. Via já a confusão que a presença de hóspede tão extraordinário provocaria. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora de jantar, de conversar com uma escritora e tantos outros mais esforços!.... E a brusca invasão daquela mundana, com as suas malas, na sua alegria de sã, na paz triste de hospital, provocava-lhe uma impressão apavorante de profanação. Foi um alívio, quase um reconhecimento, quando Alice chegou e simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio José, na outra extremidade da aldeia. Rita escandalizou-se, tinha já o quarto de hóspedes preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre as cómodas e queria-a toda para si, a prima, mulher celebre, a grande autora... Alice porém recusou:
-Tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não precisamos entrar em oposição, hem.... Venho cá jantar. de resto, não estou mal no tio José... Vejo da janela um moinho e a represa que são um quadradozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?
Bernardo olhava-a assombrado: aquela heroína, por quem os homens se perdiam, poetisa glorificada nos jornais, era uma sujeita simples - menos complicada, menos espetacular que a filha do recebedor! Nem formosa era: e com o seu chapéu desabado, sobre uma face rechonchuda, o jaquetão de flanela caia largo sobre um corpo robusto e pequeno, uns enormes sapatos, parecia-lhe um dos caçadores da aldeia que às vezes encontrava, quando ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abandonada à hipoteca, era a de Fonte Arcada, uma fazenda perto da vila, que andava além disso mal !...arrendada E lamentava sinceramente ver a prima ali, inútil sobre uma cama como, sem poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, que ouviu, com grande alegria, a Rita declarar-lhe que o marido, Bernardo, era um administrador de primeira, e hábil nestas questões como um antigo advogado, trapaceiro.
--Ele vai contigo ver a fazenda, fala com o Tiago, e arranja-te tudo... E na questão do preço! deixa-o a ele!...
--Mas como é superior, primo! exclamou Alice espantada. --Um anjo que entende de cifras! Pela primeira vez na sua existência Bernardo corou com a palavra duma mulher. De resto prontificou-se logo a ser o procurador da prima.
O Sr. Bernardo ficou alterado com esta visita. Via já a confusão que a presença de hóspede tão extraordinário provocaria. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora de jantar, de conversar com uma escritora e tantos outros mais esforços!.... E a brusca invasão daquela mundana, com as suas malas, na sua alegria de sã, na paz triste de hospital, provocava-lhe uma impressão apavorante de profanação. Foi um alívio, quase um reconhecimento, quando Alice chegou e simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio José, na outra extremidade da aldeia. Rita escandalizou-se, tinha já o quarto de hóspedes preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre as cómodas e queria-a toda para si, a prima, mulher celebre, a grande autora... Alice porém recusou:
-Tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não precisamos entrar em oposição, hem.... Venho cá jantar. de resto, não estou mal no tio José... Vejo da janela um moinho e a represa que são um quadradozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?
Bernardo olhava-a assombrado: aquela heroína, por quem os homens se perdiam, poetisa glorificada nos jornais, era uma sujeita simples - menos complicada, menos espetacular que a filha do recebedor! Nem formosa era: e com o seu chapéu desabado, sobre uma face rechonchuda, o jaquetão de flanela caia largo sobre um corpo robusto e pequeno, uns enormes sapatos, parecia-lhe um dos caçadores da aldeia que às vezes encontrava, quando ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abandonada à hipoteca, era a de Fonte Arcada, uma fazenda perto da vila, que andava além disso mal !...arrendada E lamentava sinceramente ver a prima ali, inútil sobre uma cama como, sem poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, que ouviu, com grande alegria, a Rita declarar-lhe que o marido, Bernardo, era um administrador de primeira, e hábil nestas questões como um antigo advogado, trapaceiro.
--Ele vai contigo ver a fazenda, fala com o Tiago, e arranja-te tudo... E na questão do preço! deixa-o a ele!...
--Mas como é superior, primo! exclamou Alice espantada. --Um anjo que entende de cifras! Pela primeira vez na sua existência Bernardo corou com a palavra duma mulher. De resto prontificou-se logo a ser o procurador da prima.
VI
No outro dia, um dia de março fresco e claro, foram ver a fazenda, partiram a pé, Acanhada perante aquela companhia de leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar da simplicidade dele, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre da sua voz, nos seus olhos pequenos e brilhantes alguma coisa de forte, de dominante, que a enliava. Tinha-se-lhe prendido à orla do vestido um galho de silvado, e como ele se baixara para o desprender delicadamente, o contato da sua saia incomodou-a com singularidade. Apressou o passo para chegar depressa à fazenda, aviar o negócio com o Tiago e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido - e a conversa de José foi-a lentamente acostumando à sua presença.
Ela parecia desconsolada com aquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns conselhos: o que a pequena precisava era ar, sol, uma vida diferente daquele abafamento de alcova...
O Bernardo também pensava assim: mas a pobre Rita, sempre que se falava em ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha medo aos grandes ares, aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-a quase desmaiar; tornava-se,um ser artificial, escondida entre os cortinados da cama...
Ele então lamentou-o, decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão imaculadamente cumprido,,, Mas, enfim, a Rita e a pequena deviam ter momentos em que desejassem outra coisa além das quatro paredes, impregnadas de bafo e de doença...
--Que hei-de eu desejar mais? - disse ele.
Alice calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que Bernardo desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria - que falou da paisagem...
--Já viu o moinho?- perguntou-lhe ele.
--Tenho vontade de o ver, se mo quiser mostrar, primo.
--Hoje é tarde.
combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que é utopia da aldeia.
Ela parecia desconsolada com aquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns conselhos: o que a pequena precisava era ar, sol, uma vida diferente daquele abafamento de alcova...
O Bernardo também pensava assim: mas a pobre Rita, sempre que se falava em ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha medo aos grandes ares, aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-a quase desmaiar; tornava-se,um ser artificial, escondida entre os cortinados da cama...
Ele então lamentou-o, decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão imaculadamente cumprido,,, Mas, enfim, a Rita e a pequena deviam ter momentos em que desejassem outra coisa além das quatro paredes, impregnadas de bafo e de doença...
--Que hei-de eu desejar mais? - disse ele.
Alice calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que Bernardo desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria - que falou da paisagem...
--Já viu o moinho?- perguntou-lhe ele.
--Tenho vontade de o ver, se mo quiser mostrar, primo.
--Hoje é tarde.
combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que é utopia da aldeia.
Na fazenda, conversou muito como Bernardo criou com uma aproximação maior entre Bernardo e Rita. Aquela venda punha entre eles um interesse comum. Quando voltaram ele vinha com menos reservas. Ele tinha maneiras; e era de um respeito tocante, com a atração que fez com que ele se revela-se, deu-lhe confiança nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da sua melancolia oculta que errava na sua alma. Além de que as suas queixas eram sobre a mesma dor - a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ela uma simpatia, com um desejo de o ter sempre presente, porque ele tornara-se depositário das suas tristezas. Alice voltou para oseu quarto, na estalagem do José impressionada, interessada por aquela criatura tão triste e doce. Ele destacava-se sobre o mundo de homens que conhecera, como um perfil suave e gótico entre as fisionomias da mesa redonda.
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