O Moinho

I
O senhor Bernardo era um homem de respeito e honesto, assim era tido na aldeia, Nesse tempo era muito importante ser honesto.
_A aldeia tinha quase orgulho da sua honestidade tocante e brilhante; era um homem forte, mas fino, de pele semelhante ao marfim, e olhos escuros de tom violeta, a que as pestanas grandes escureciam mais o brilho de sombra doce. Morava à beira do rio, numa casa caiada de branco, com uma faixa azul no fundo das paredes, que tinha uma escada que dava para a cozinha; e eram as pessoas que tinham que ir fazer o giro até ao moinho, que sempre o achavam um encanto de simpatia sempre renovada, viam-no por trás da vidraça, entre os sacos de farinha, curvado sobre a mó, vestido de branco, que o pó da farinha matizava de cor branca de neve, «recolhido, mas alegre. Sorria com simpatia aos que chegavam. tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava


II
A esposa, a D, Rita, mais nova que ele, era muito magra, Era doente, passava o tempo na cama, não tinha forças para fazer nada, por isso, havia anos que não saia à rua, era vista às vezes à janela. pálida e trôpega, agarrada à bengala, encolhida vestindo uma espécie de bata, com a face cadavérica e com um barrete de seda, enterrada tristemente até ao pescoço. Tinham apenas uma filha, a Maria do Carmo, que era também como a mãe, uma rapariga magra e doente. Crescia pouco e com dificuldade, cheia de tumores, chorões e tristonhos. A casa parecia fúnebre. Andava-se nas pontas dos pés, para não fazer o menor barulho; havia sobre as cómodas algumas garrafas que trouxeram da farmácia, uma tigela com papas de linhaça; as flores com que ele ornou, no seu arranjo e a seu gosto de frescura, as mesas. Rapidamente murcharam naquele ar de febre e abafado, que não era nunca renovado, por causa  das correntes de ar; era uma tristeza ver a pequena com um emplastro sobre os tumores, ou a um canto sentada numa cadeira de palhinha, embrulhada em cobertores com uma amarelidão de hospital.


III
O Bernardo vivia desse modo, quando morava em casa dos pais. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai gastava tudo o que ganhava em tabernas e a jogar à batota, já velho, andava sempre bêbado e quando estava em casa passava os dias à lareira, num silencio escuro, cachimbo nos beiços a escarrar sobre as cinzas. Todos os dias batia na mulher. 
Bernardo, pediu a Rita em casamento, para se livrar daquela situação em que vivia. Não amava a esposa, decerto, e na aldeia lamentou-se que aquele rapaz fosse entregar-se à Ritinha. Bernardo, com a morte do pai, ficou mais pobre; e acostumasse, finalmente, à esposa mal humorada, que passava o dia arrastando-se da sala para o quarto, resignou-se, na sua natureza de sustentador e tratador. Se a filha tivesse nascido sã e robusta. Mas aquela família que existências e hesitantes, que eles vieram apodrecer nas mãos dele, apesar dos seus cuidados agitados, apoquentavam-no. Às vezes, só cuidando das suas mós, sentia-se triste, com a fadiga da vida que o invadia como uma névoa que lhe escurecia a vida e a alma.


IV
Mas se a esposa  chamava, ou um dos filhos chorava baixinho; limpava  os olhos e aparecia com a sua face bonita  tranquila, com alguma palavra consoladora, animava um, feliz e contente. A sua ambição era ver o seu mundo manuseado e bem acarinhado: Sem curiosidades, desejos, ou caprichos: nada o interessava, apenas as horas dos remédios. Todo o esforço era fácil, quando os contentava: mesmo cansado, passeava horas, conversava e lia as Vidas dos Santos, para a esposa, sentado à beira da cama, porque a doente ia caindo em devoção. De manhã acordava um pouco pálido. À tarde  sentava-se à janela do moinho,olhando para a mó, que rodava e triturava os grãos transformando-os em farinha. A paisagem que via parecia-lhe tão monótona como a sua vida: em baixo o rio deslizava, entre as curvas dos campos, era uma terra humosa, cheia de matéria orgânica, plantada de milho, e erguia-se ao fundo, uma colina triste e despida, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casa que transmitisse daquela solidão de terra pobre uma nota de humanidade e vida. Todos os domingos ele procurava assistir à missa, que se realizava às sete horas da manhã. A sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas, o seu lar ocupava-o demasiado para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de bom pai, que cumpria com amor, se encontrava uma satisfação à sua sensibilidade; adorava os santos e enternecia-se com Jesus. Pensava que se a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, o tempo gasto em arrastar-se pelo confessionário ou junto do oratório, era uma diminuição cruel do cuidado prestado em casa; a sua maneira de rezar proteger a filha; e aquela pobre esposa pregada numa cama, tudo dependia dele, tinham-no só a ele, parecia-lhe terem mais direito ao seu favor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar quase toda a humanidade: o seu hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser o centro, a força, e amparo daqueles doentes, tornaram-no terno,mas prático: e assim era certo que administrava a casa, com bom senso e afeição, era um homem cuidadoso e um pai munido. Eram as ocupações que bastavam para ocupar quase o dia inteiro; a esposa, de resto, detestava visitas, o aspeto de caras saudáveis, as lastimas de cerimónia; e passavam-se meses sem que em casa de Bernardo se ouvi-se uma voz estranha à família, a não ser a do dr. Fausto - que o adorava.


V
Foi grande a exaltação que se verificou na casa, quando D. Rita recebeu uma carta de sua prima Alice, para  lhe anunciar que dentro de dois ou três semanas chegava à aldeia. Alice era uma mulher célebre, e  a esposa de Bernardo tinha naquela parente um orgulho impressionante. Alice era uma romancista e o seu último livro, Mariana, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, de uma análise dedicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua fama que já chegara à aldeia, apresentava-a como uma personalidade interessante, uma heroína de Lisboa, amada pelas pessoas importantes, impetuosa e brilhante, destinada a ocupar uma alta situação no Estado. Mas realmente na aldeia era notável especialmente por ser prima da Ritinha.
O Sr. Bernardo ficou alterado com esta visita. Via já  a confusão  que a presença de hóspede tão extraordinário provocaria. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora de jantar, de conversar com uma escritora e tantos outros mais esforços!.... E a brusca invasão  daquela mundana, com as suas malas, na sua alegria de sã, na paz triste de hospital, provocava-lhe  uma impressão apavorante de profanação. Foi um alívio, quase um reconhecimento, quando Alice chegou e simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio José, na outra extremidade da aldeia. Rita escandalizou-se, tinha já o quarto de hóspedes preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre as cómodas e queria-a toda para si, a prima, mulher celebre, a grande autora... Alice porém recusou:
-Tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não precisamos entrar em oposição, hem.... Venho cá jantar. de resto, não estou mal no tio José... Vejo da janela um moinho e a represa que são um quadradozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?
Bernardo olhava-a assombrado: aquela heroína, por quem os homens  se perdiam, poetisa glorificada nos jornais, era uma sujeita simples - menos complicada, menos espetacular que a filha do recebedor! Nem formosa era: e com o seu chapéu desabado, sobre uma face rechonchuda, o jaquetão de flanela caia  largo sobre um corpo  robusto e pequeno, uns enormes sapatos, parecia-lhe um dos caçadores da aldeia que às vezes encontrava, quando ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio  jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra  que não estava  devorada, ou abandonada à hipoteca, era a de Fonte Arcada, uma fazenda perto da vila, que andava além disso  mal !...arrendada E lamentava sinceramente ver a prima ali, inútil sobre uma cama como, sem poder ajudar nesses  passos  a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, que  ouviu, com grande alegria, a Rita declarar-lhe que o marido, Bernardo, era um administrador de primeira, e hábil nestas questões como um antigo advogado, trapaceiro.
--Ele vai contigo ver a fazenda, fala com o Tiago, e arranja-te tudo... E na questão do preço! deixa-o a ele!...
--Mas como é superior, primo! exclamou Alice espantada. --Um anjo que entende de cifras! Pela primeira vez na sua existência Bernardo corou com a palavra  duma mulher. De resto prontificou-se logo  a ser o procurador da prima.


VI
No outro dia, um dia  de março fresco e claro, foram ver a fazenda, partiram a pé, Acanhada perante aquela companhia de leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar  de um pássaro assustado: apesar  da simplicidade dele, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre da sua voz, nos seus olhos pequenos e brilhantes alguma coisa de forte, de dominante, que a enliava. Tinha-se-lhe prendido à orla do vestido um galho de silvado, e como ele se baixara para o desprender delicadamente, o contato da sua saia incomodou-a com singularidade. Apressou o passo para chegar depressa à fazenda, aviar o negócio com o Tiago e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido - e a  conversa de José foi-a lentamente acostumando à sua presença.
Ela parecia desconsolada com aquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns conselhos: o que a pequena precisava era ar, sol, uma vida diferente daquele abafamento de alcova...
O Bernardo também pensava assim: mas a pobre Rita, sempre que se falava em ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha medo aos grandes ares, aos grandes horizontes: a natureza  forte fazia-a quase desmaiar; tornava-se,um ser artificial, escondida entre os cortinados da cama...
Ele então lamentou-o, decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão imaculadamente cumprido,,, Mas, enfim, a Rita e a pequena deviam ter momentos em que desejassem outra coisa além das quatro paredes, impregnadas de bafo e de doença...
--Que hei-de eu desejar mais? - disse ele.
Alice calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que Bernardo desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria - que falou da paisagem...
--Já viu o moinho?- perguntou-lhe ele.
--Tenho vontade de o ver, se mo quiser mostrar, primo.
--Hoje é tarde.
combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que é utopia da aldeia.
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Na fazenda, conversou muito como Bernardo criou com uma aproximação maior entre Bernardo e Rita. Aquela venda punha entre eles um interesse comum. Quando voltaram ele vinha com menos reservas. Ele tinha maneiras; e era de um respeito tocante, com a atração que fez com que ele se revela-se, deu-lhe confiança nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da sua melancolia oculta que errava na sua alma. Além de que as suas queixas eram sobre a mesma dor - a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ela uma simpatia, com um desejo de o ter sempre presente, porque ele tornara-se depositário das suas tristezas. Alice voltou para oseu quarto, na estalagem do José impressionada, interessada por aquela criatura tão triste e doce. Ele destacava-se sobre o mundo de homens que conhecera, como um perfil suave e gótico entre as fisionomias da mesa redonda.


Cascais, perto do hotel miramar


Ele concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a docura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, faziam-no um ser  delicado e tocante, a que o seu espírito burguês, o seu fundo subtil aldeão e uma leve vulgaridade de hábitos davam encantamento: era um anjo que vivia há muito tempo numa aldeola grosseira e estava preso às trtivialidades do sítio: mas bastava um empurrão para que ele volta-se ao céu natural, aos cimos da pura sentimentalidade...
Achava infame fazer a corte à prima... Mas se querer pensava no delicioso prazer de fazer pensava no delicioso prazer de fazer bate aquele coração que não estava deformado elo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse arroz e o que tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade.


VII
O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto da Natureza, digno de um Corot, sobretudo à boa hora em que eles lá foram, era meio-dia, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e todos os múrmurios de água corrente, fugindo, luzindo entre os musgos e as pedras, transportando e espalhando, no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era pitoresco e altivo, com a sua velha edificação de pedra secular,a roda enorme, apodrecida e coberta de ervas, imóvel sobre a gélida limpidez da água escura. Alice achou-o digno duma cena de romance, ou, melhor, da morada duma fada. Bernardo ia calado achando aquela admiração pelo moinho abandonado do tio Francisco, extraordinária. Como ela estava um pouco cansada, sentaram-se numa escada desmanchada, de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus. E ficaram calados um momento, dentro daquela frescura murmurosa, ouvindo  as aves piarem nas ramadas, alice via-o de perfil, curvado, esburacando com a ponta do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era delicioso assim, tão branco, tão louro, duma linha tão pura, sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, a sua manta antiquada, mas ela achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos à volta isolava-os - e insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a melancolia de existir naquela triste aldeia,  pelo seu destino de enfermeiro... Ela escutou de olhos baixos, pasmada por se sentir tão só com aquele homem robusto, receosa e achando um sabor delicioso no seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar para sempre na aldeia. 
--Ficar aqui? Para quê? -- perguntou ele, sorrindo.
--Para quê? para isto, para estar sempre perto de si...
Ela ficou corada, o guarda-solinho caiu-lhe das mãos.Bernardo receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo: Pois não era delicioso? Eu podia arrendar este moinho, fazer-me moleiro... A prima Havia de me dar a sua freguesia... 
Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro e de ir pela estrada tocando o burro, carreagado de sacas de farinha. 
E eu quero ajudá-lo, primo! --Disse ela, animada pelo seu próprio riso, e pela alegria daquele homem a seu lado.
Vem? --exclamou ele. Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho, vivendo a nossa vida alegremente, e ouvindo cantar esses melros!






Cascais: Parque Marechal Carmona

VIII
Ele corou com o fervor daquela voz e ela recuou como se ele a fosse levar para o moinho, mas Alice agora inflamada com aquela ideia, escutava as palavras colorindo-as com uma com  uma vida romanesca, que transmitiam uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura:




















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